Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer

Texto escrito para a edição #22 da revista Amarello, que tinha como tema a questão do “Duplo”. À época da publicação, o nome “Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer” era o nome de uma canção ainda inédita. No final de 2017, a incluí no meu terceiro disco solo ao qual dei o mesmo nome da canção e deste texto.

É frequente ouvirmos que todo homem tem um lado feminino e toda mulher um lado masculino. Afinal, temos todos uma origem comum. Mas que origem é essa? Os homens imaginam histórias na tentativa de explicar o mistério.

Um

No começo o homem era macho e fêmea. A história do primeiro ser humano como um duplo faz parte do imaginário de diversas culturas. No Ocidente, nos chegou a partir de duas fontes principais: o mito do andrógino, que remonta à Grécia antiga, berço da nossa civilização, e o mito hebraico-cristão de Adão e Eva. No Banquete, de Platão, é contado que a princípio havia três espécies na terra: o homem, a mulher e o andrógino; este era uma espécie corajosa e forte de corpo, tinha duas cabeças, quatro braços, quatro pernas e dois orgãos de geração; pretendeu fazer guerra aos deuses e como castigo pela insolência, Zeus ordenou separá-lo em dois, “do mesmo modo que com um fio de cabelo se dividem os ovos para temperá-los com sal”. Há também vários indícios no Gênesis de que Adão, criado à imagem de Deus, reunia em estado psíquico elementos masculinos e femininos, segundo o princípio da harmonia universal do uno, que é composto de dois. Também era portanto um andrógino. A essa altura, possuía uma sexualidade em estado primário, acasalando-se com os animais (não por outro motivo os havia nomeado, pois o desejo por algo implica nomeá-lo). Também por isso surge a necessidade de diferenciação. Assim, no Jardim do Éden, não tendo Deus encontrado parceira a par de Adão, cria finalmente a mulher a partir de sua costela: “E disse o homem, esta desta vez osso de meus ossos e carne de minha carne; a esta chamarei mulher.”

Dois

Pois entre o homem e a mulher o desejo. Agora partes separadas, não cessavam de buscar a metade perdida. Quando se encontravam, lançavam-se aos braços um do outro até morrer de fome. Compadecido com a extinção da raça, Zeus transpôs os orgãos genitais para a frente, pois até então os andróginos concebiam e geravam sozinhos; dessa forma o homem e a mulher passaram a reproduzir. Adão e Eva ainda estavam no paraíso. A serpente deu voltas em Eva e a fez comer o fruto da árvore do conhecimento; disse: “Morrer não morrereis, pois sabe Deus que no dia em que dele comerdes se abrirão vossos olhos e serão como deuses.” A árvore era uma delícia para os olhos da mulher e ela acabou por ceder à tentação; também deu de comer ao homem. Abriram-se então os olhos dos dois e descobriram-se nus. A perda da inocência.

O retorno ao um

O homem e a mulher irradiam dos orgãos sexuais um magnetismo que, mais forte do que a razão, traz à superfície das convenções sociais a dimensão do interdito que está na origem da queda foi por desobedecer aos deuses que os andróginos foram separados em dois, foi porque Adão e Eva comeram da árvore do conhecimento e antes que comessem da árvore da vida e vivessem para o eterno-sempre, que acabaram expulsos do paraíso. O homem desejou a imortalidade dos deuses e como castigo foi condenado à solidão. Nascemos e morremos sozinhos e entre nós um abismo insondável. Mas o sentimento de finitude não nos é suportável; por isso, desejamos a fusão com o outro numa tentativa desesperada e inútil de retorno ao um originário. A nudez — a abertura dos corpos através de seus canais perturba a ordem; instaura um estado de violência, descontrole e perda de si. Daí a metáfora do orgasmo como “la petite mort”, pois para Georges Bataille o desejo de fusão só pode encontrar sentido na morte: haveria um momento durante a reprodução em que o espermatozóide e o óvulo, enquanto seres no estado elementar de finitude, se uniriam para a formação de um novo ser a partir da extinção dos seres separados. Esse novo ser traria inscrito em si a marca da fusão mortal.

*

Até os dez primeiros dias de gestação não há distinção entre o orgão genital masculino e feminino. A glande e o clitóris possuem uma estrutura equivalente; a depender dos genes determinados no momento da concepção o pênis e a vagina se desenvolvem pela presença ou ausência de andrógenos. Fora da barriga da mãe, caídos nas horas, meninos meninas extasiados continuarão a busca sem nexo do eterno um.