Canção do amor impossível

essa música é uma longa história.

guinga.

lembro quando era adolescente, teve uma época que meu pai estava vidrado no guinga, só falava dele com os amigos, ia a muitos shows dele. lembro de pensar, “do jeito que pintam esse cara, ele deve ser um alienígena”. finalmente, fui com meu pai a um show do guinga no municipal de niterói e lembro de ficar hipnotizado com seus dedos que não paravam de se mexer cadenciados no braço do violão. nesse show ele era acompanhado pela orquestra mantiqueira, mas eu não me lembro do som da orquestra, só me lembro dos dedos e do som do violão dançando juntos. depois, meu pai começou a jogar bola com ele numa pelada que tem toda quarta há anos no clube dos macacos, no horto. eu era muito garoto ainda, mas meu pai me levava pra jogar com os marmanjos. guinga gostava do jeito que eu jogava, mas gostava ainda mais do estilo do meu irmão mais novo. não sei em que momento ele descobriu que eu gostava de cantar. mas sei que antes disso fui a muitos shows dele, a tantos que nem sei, nas mais diferentes situações. em alguns, eu já devia ter uns 16 anos, ele me chamava pra cantar uma música do djavan que nós dois adorávamos, um foxtrot, acho que se chama “aliás”. ele fazia isso com muitos jovens artistas que admirava e que hoje estão construindo suas carreiras e são amigos. em alguns desses shows, ele também convidava thiago amud, de quem adorava o jeito de tocar violão. e lembro agora que conheci vovô bebê também numa situação dessas, em um show no jockey do rio em que guinga o chamou da plateia para mostrar suas canções. faz tempo isso. guinga também tratou dos meus dentes uma vez no seu consultório no grajaú e ficamos tocando violão a tarde inteira num violão pequenininho que ele tinha lá. ele me mostrava canções antigas que ele gostava de tocar e me ensinava a cantá-las ali mesmo. dizia que adorava acompanhar alguém cantando. guardo — agora não mais — secretamente o desejo de gravar um disco de voz e violão com ele só com essas canções de sua memória afetiva. lindas. desde então, guinga virou uma referência pra mim, daquelas que não consigo dissociar do que faço. igual, só djavan e caetano. o jeito dele tocar violão é ao mesmo tempo áspero e delicado, característica que, hoje tenho consciência, muito me traduz – um lirismo de alta tensão.

cicero. 

conheci cicero através do eucanaã, que um dia (quando era seu aluno ouvinte na letras da ufrj) me viu lendo a cidade e os livros, do cicero, e me chamou pra um evento de literatura em que ele ia estar. lembro que depois fomos a um restaurante na lapa, um monte de gente, e eu fiquei muito tímido na mesa. não sei se a essa altura eu já tinha lido seus livros de filosofia que fizeram a minha cabeça, sobretudo o mundo desde o fim. nos encontramos muitas outras vezes depois e quando ficávamos frente a frente os dois, tímidos, não sabia onde meter minha cara naquele silêncio. hoje isso já está superado. uma noite, em que estava sozinho, melancólico em casa, pronto para encontrar algumas pessoas na lapa, fui adiando minha saída porque tentava fazer uma melodia junto com os acordes do violão para o poema do cicero “canção do amor impossível”, cuja letra pra mim, que muito antirromanticamente acho que os amores são possíveis, era uma facada, porque a impossibilidade era real, sem saída, a distância de idades e momentos de vida que separava a pessoa mais velha que havia se apaixonado pela mais nova – um desencontro fatal. fiz uns acordes, por coincidência bem complicados, tipo os do guinga, e os achei lindos e pungentes tais quais pedia a letra. eu gosto muito de como essa canção ficou: triste.

canção do amor impossível. 

eu e arthur nogueira, muito fã do cicero também, íamos fazer um disco juntos, que acabou por não sair, com melodias nossas sobre poemas. foi para essa ocasião que convidei o guinga para gravar. isso foi em 2012. apesar da nossa amizade e da relação quase paternal que ele tinha comigo, fiquei muito tímido em convidá-lo para gravar uma música minha, porque ele era e é um monumento pra mim. me enchi de coragem e ele muito generosamente aceitou. desde o início, achei engraçado juntar guinga com antonio cicero, porque os dois habitam mundos muito distantes – estilos, estéticas, comportamentos –, mas porque a música é ecumênica, eles se encontravam ali, e por causa de mim. gosto disso. gravamos na casa do gabriel, que na época tocava bateria na minha banda “isadora”, e que tinha um quarto isolado acusticamente, e andrés, também da banda, gravou o aúdio e mixou. (tem um vídeo de celular dessa gravação no youtube). guinga foi aprendendo a música na hora e logo foi colocando aqueles acordes que são só dele, com uma paleta de cores própria – pra mim, sépia –, um fraseado, um jeito de tocar únicos. fiquei muito emocionado ao ouvir a minha música transformada nas mãos dele, tão bonita quanto tantas que eu já tinha visto ele tocar. no quarto do gabriel, ensaiamos algumas vezes até a gente se entrosar e gravamos a boa, sem edições. acho que dá pra ouvir na gravação as respirações de um e de outro tentando não perder o encaixe. isso de algum modo me incomodava. meu amigo, o guitarrista pitter rocha, pra quem mostrei a gravação na época, disse que essa tensão soava muito musical. passei a concordar com isso.

ionit. 

porque demorei tanto para publicar essa canção, não sei. ia lançá-la num projeto que eu tinha de singles, mas que também não foi pra frente. nesse projeto, cheguei a lançar três outros singles. a ideia era alargar a ideia de canção para além da letra e da melodia juntando-a a imagens de artistas plásticos que criavam algo especialmente para ela. lancei “a cidade sou eu”, com a banda strobo e omar salomão; “je t’explique”, com eucanaã ferraz, cadu tenório e ana rovati; e “praia grande”, que acabou virando um disco experimental – uma faixa estendida – com a banda de improvisação livre “lanca”. para esta “canção do amor impossível” tinha pedido a arte à ilustradora ionit zilberman, que fez costuras com flores secas e sacos de chá preto usados e colou letrinhas formando frases de desamor. oito anos se passaram. e ponto.