Escrevi este texto para a edição #28 da revista Amarello, cujo tema foi “O feminino”.
essa canção de luis capucho e marcos sacramento, que gravei no disco “babies”, é uma pequena obra-prima. ela canta —
os mundos são mais belos
quando olhados pela janela
e as colinas estão repletas de homens fortes
e eu olho pra elas
porque elas são o mundo inteiro
e eu olho pra eles
porque eles são o mundo inteiro
e eu olho pra elas
porque elas são meu terreno
e eu olho pra eles
porque eles são meu terreno
onde eu vou plantar
onde eu vou plantar
flores homens
homens flores
flores homens
homens flores
— a letra e a melodia juntas passam uma sensação de profunda leveza, um feito que (não) se explica no mistério que pode ser alcançado pela intuição do compositor quando cria uma canção — um empenho do corpo inteiro, da memória, dos desejos, no passadopresentefuturo, integração cósmica da pessoa no espaço-tempo. tento penetrar o mistério e entender de que ele é feito; os picos de alegria, onde estão.
a primeira coisa que me vem são os homens nas colinas, uma imagem que me remete à beleza clássica da grécia antiga, de exibição e celebração do corpo (me lembro também de walt whitman, que cantou a saúde dos corpos quando servia de enfermeiro aos feridos da guerra de secessão nos estados unidos).
na sequência, já aparece uma surpresa, porque justo depois de “e as colinas estão repletas de homens fortes”, é dito “e eu olho pra elas” (e o esperado seria “eles”, os homens); sempre fiquei sem entender direito, mas o que me vinha era antes de que se falava de homens como o gênero humano, que inclui homens e mulheres. mas quando fui ao texto, a correção gramatical (que para a canção não vale lá grande coisa, porque elas está regida mais pelas sugestões sensuais do que pelo entendimento) me levou às “colinas” o “elas” e “eles” aos “homens fortes”; e assim, os homens são mesmo homens do sexo masculino. mas no fundo é a beleza que se insinua no “mal entendido” sintático que a deixa mais bonita. depois de homens fortes, quando seria esperado “eles”, se diz “elas”; esse estranhamento faz unir o masculino ao feminino, reforçado pela sequência de paralelismos, “e eu olho pra elas”, “e eu olho pra eles”; e tanto elas como eles passam a ser a mesma coisa, “o mundo inteiro”, “meu terreno”, tornando indistintos os gêneros.
é nesse terreno que o cantor vai plantar os homens flores. assim como todos nascemos do ventre da mulher, eles vão nascer do ventre da mãe-terra. uma dinâmica de diferenciação (na oposição repetitiva de “elas” e “eles”) e de conciliação dos contrários, que remete à unidade primordial que antecede a criação.
ao fim, tudo retorna à primeira imagem: ali, nas colinas, onde estão apinhados sob o sol (quem diz do sol é a melodia) os homens flores — resplandecendo.
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a palavra misoginia significa ódio ou aversão às mulheres, mas, seguindo a sugestão de camille paglia, ela tem uma conotação mais complexa, sugerindo o medo às mulheres. sendo assim, o sentido mais comum atribuído à palavra seria antes uma consequência desse medo. o escritor jean delumeau, no livro “história do medo no ocidente”, dedica um longo capítulo, intitulado os agentes de satã, a três figuras párias da civilização ocidental: o muçulmano, o judeu e a mulher; descreve o processo de diabolização da mulher pelo discurso católico oficial e pela literatura. se o medo está na origem do ódio às mulheres, outro efeito da misoginia pode ser a adoração religiosa à mulher. vinicius de moraes é um exemplo desse último caso. percebe-se claramente nos seus dois primeiros livros, em poemas como o a legião dos úrias, o terror à mulher implantado por sua formação católica:
(…) dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
dos cavaleiros úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.
são os escravos da lua. vieram também de ventres brancos e puros
tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte…
mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.
e desde então nas noites claras eles aparecem
sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
e vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
e das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes (…)
de sua “desconversão”, na obra posterior, podemos tirar os versos mais apaixonados de veneração à mulher, que, embora de carne e osso, guarda a aura da mulher total, da santa virgem maria.
se o medo está na origem, todo homem é misógino. a alteridade feminina se mostra ao homem por demais misteriosa (e ameaçadora). uma coisa essencial torna muito diferentes as experiências de estar no mundo do homem e da mulher: a maternidade. o fato de poder gerar uma vida dentro de si faz com que a mulher esteja conectada com as forças da natureza de um modo que o homem é incapaz de estar. mesmo para as mulheres que (ainda ) não são mães, o ciclo menstrual as põe em compasso com o movimento da lua (e antes da menstruação, o instinto feminino). não consigo imaginar uma experiência mais telúrica do que sentir crescer um ser humano dentro da barriga — a posição de cócoras utilizada por muitas mulheres no momento do parto faz os pés parecerem raízes fincadas no solo — o grito de dor é grito que invoca toda nossa ancestralidade de bicho.
(o grito da maior dor, a do parto, é o mesmo grito do maior prazer, o do orgasmo; nessa analogia entre extremo opostos, o grito que dá a vida é o mesmo que emitimos quando morremos no momento do prazer extremo, que georges bataille chamou de “pequena morte”; essa similaridade perturbadora também só pode (não) ser compreendida na dimensão mítica
obs.
perdi a razão
querer entrar por onde saí
que quer dizer
essa louca intenção
tudo é circular
morrer morrer morrer
morrer onde nasci
morrer entrar nascer sair
querer entrar por onde saí
morrer entrar nascer sair
querer entrar entrar
de novo sair
perdi a razão)
o mundo é concreto para as mulheres, acho que vem daí o gosto muito natural pelas coisas, pela aparência, que vai dar no clichê do consumismo. daí também um tipo de intelectualidade muito diferente da do homem, este mais inclinado ao conceito e à abstração — me lembro da hannah arendt dizendo, numa entrevista, que não gostava de ser chamada de filósofa, mas de cientista política; de fato, seus textos têm uma inteligência com sabor de terra. não à toa a condição humana, para ela, é o estar entre seus pares, ou seja, a política. é claro, as mulheres têm seu jeito de estar com a cabeça nas nuvens, assim como os homens também têm o seu, mas estes parecem ter mais do que a cabeça o corpo todo nas nuvens, inábeis para lidar com a beleza diária do cotidiano, enquanto a mulher parece se relacionar com isso de forma mais espontânea e bem resolvida; a imaginação feminina vai para outros lugares, não sei bem dizer quais, talvez para uma fantasia de totalidade, porém tirar os pés do chão.
o estar no mundo feminino tem uma lógica conciliatória — deveríamos sempre pensar na hipótese de que se não fossem os homens é pouco provável que houvesse guerras; uma mulher que sabe e sente e possui o poder de dar a vida não é capaz enquanto coletivo de criar a instituição que a extingue. a noção de progresso, calcada numa posição declarada de rivalidade contra a natureza, de criação do artifício, é necessária, masculina, anti-feminina — ainda como diz a dissidente feminista (inteligente e controversa) camille paglia, o homem quer se separar da mãe e por isso sai a vagar e buscar proteção na arquitetura, na arte etc.
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o homem não deixa a mulher falar, porque ela representa o perigo ao projeto masculino de civilização.
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interessante notar que justamente hoje, quando muitos intelectuais estão refletindo sobre a ruína do norte racionalista — que tem seu maior e mais brutal exemplo no utilitarismo capitalista (justificativa inconteste para as maiores atrocidades humanas) — e retornando ao frescor da ciência prenhe de fantasia do medievo, o que se deseja é mais irracionalidade, em outra palavras, mais corpo, intuição, contribuições dos sentidos para as formas de convivência. o corpo é o contra-discurso — e ele é do império feminino.
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uma amiga, outro dia no café (quando perguntei a ela se concordava com o que françoise dolto dizia, que a sexualidade feminina está culturalmente menos localizada no orgão genital por causa de uma sublimação na obra, ou seja, filhos, família etc., e que esse discurso tinha me soado anacrônico com o debate feminista atual), me disse que a própria estrutura do canal da vagina faz o prazer sexual irradiar para dentro do corpo e imantá-lo de um jeito difuso; e que a maioria dos homens não entendia isso e que era por esse motivo que ela (assim como outras) passou a buscar satisfação sexual também com mulheres. outra amiga, para quem pus a mesma questão, me disse que concordava com dolto, ainda que o lugar do prazer estivesse recolocado nos dias de hoje; o direito ao prazer sem o julgamento moral, de origem notadamente masculina.
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segundo o mito, o andrógino está na origem. desafiamos os deuses e zeus nos separou em homem e mulher. a partir de então não paramos mais de buscar a metade perdida. reproduzimos para tentar nos fundir novamente em um.
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meu filho de três anos me disse que queria ser menina porque queria ser “igual a mamãe”. outro dia, observando minha filha de três meses, tive claro entendimento de que nela eu me tornei menina — de verdade, com fundamento biológico.