1. Bad Bahia
Mariana Quadros – Há temas obsessivos nos seus trabalhos: amor, corpo, tempo, melancolia. Um me chamou atenção, não porque é mais marcante, mas porque você faz uma abordagem de maneira incomum: é Deus. Tem bastante Deus e o sagrado. Uma espécie de ausência de Deus. E de profanação de Deus. O primeiro Deus que aparece na música “Bad Bahia” é a imagem do absoluto abandono. Na canção “Amor a quanto obriga”, do seu primeiro disco, Amarelo, era “eu, sem Deus, centro de tudo o que existe”, e nesse aqui é um esvaziamento total. Ao mesmo tempo, o som é ritualizado. Aquela percussão, o arpejo que se repete e vai crescendo. Uma espécie de apocalipse. Tem uma dimensão religiosa aqui, como se fosse uma perda. O disco é muito melancólico. E dolorido. É como se Deus entrasse para reforçar essa solidão. A solidão da pessoa abandonada porque perdeu o outro. E aí essa separação vai colocar esse “eu” que aparece na canção sempre perguntando pelo outro. Essa coisa da pergunta que volta: “cadê você?”. Não tem nem mais a possibilidade do “eu” ser o centro de nada. Na questão do entendimento, ele não consegue mais se entender. Se perdeu, se perdeu de si mesmo e se perdeu de tudo. Então, não pode ser centro de nada. E Deus também aparece como pergunta – é uma questão reflexiva, de quem está tentando entender, não é?
Bruno Cosentino – Isso que você falou foi muito revelador pra mim. Realmente, já não tem centro. Pensando agora, eu percebo isso também em todo um movimento que naturalmente tenho feito em direção ao mistério de um entendimento sensual. Isso, comigo, está relacionado às plantas, aos caroços brotando, à beleza da mata que dá medo, a como as gavinhas de algumas trepadeiras vão se agarrando para subir. Eu sempre tive isso, mas só tomo consciência agora, tem a ver com a minha infância, que passei na casa dos meus avós na serra do mar, muito livre, mergulhado na água por horas, passava o dia com sal no corpo, muito sol e temporais incríveis, comendo frutas das árvores, tomando banho de cachoeira – era uma integração total! Mas depois (e não por isso), acreditei que eu era o centro do mundo e que cada um também seu centro e periferia dos outros, como eu. Uma visão antropocêntrica que não tenho mais. Me sinto cada vez mais parte móvel e insignificante desse mundo animado que foi o da minha infância e que me está sendo devolvido pelo contato místico com as plantas e os frutos, principalmente as sementes. Essa consciência ao mesmo tempo que é um amadurecimento, me deixa bastante fragilizado e deslocado em tudo que se liga a uma autoconfiança intelectual (e também a certa vaidade, que estou perdendo) necessária à vida prática do cotidiano e às relações sociais.
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Essa foi a primeira canção que eu fiz. Um disco importante para esse meu foi o do Leonard Cohen, chamado New skin for an old ceremony. Nome bonito, né? E é um disco lindo também. Daí que veio também eu tocar essa canção arpejada. Esse arpejo é muito dele. Até a melancolia da melodia se parece. Essa canção é a síntese do que o disco todo é. E não à toa dá nome a ele. Eu acho que toca nos temas principais da melancolia, do não entendimento das coisas. Ela começa com a cara que é “uma afronta”, que talvez o faça morrer, e termina com “cara clarão”, um renascimento. Ela é um ciclo inteiro, de nascimento e morte. A batida dessa música é a de Exu, o “toque para nascer”, a mesma que é tocada no fim do meu disco anterior, numa faixa em que canto junto com meu filho uma melodia errática de neném. E tanto esse disco como o anterior eu gravei no mato. Então, nesse eu comecei com o “toque para nascer” e com o som do mato de Araras, no Rio, e o anterior termina com o mesmo toque com fundo do mato de Macacos, em Belo Horizonte. Me identifico muito com a mitologia em torno de Exu, porque ele é o primeiro nascido, da mãe e do pai primordiais, que são, cada um, metades da cabaça. E por ele ser o primeiro nascido, ele é identificado com o número três, porque fruto de dois: pai e mãe. Mas ele também é identificado ao andrógino, justamente porque mistura o feminino e o masculino da mãe e do pai. A letra, eu gosto muito, das imagens, porque eu estava realmente embarcado, sabe? E aí eu gosto do resultado. Continuou soando bem depois.
Mariana Quadros – É interessante porque ela é uma música sobre o fim. Você falou das imagens e eu tinha notado isso. Tem um jogo de imagens muito denso, relacionado a essa lógica do apocalipse, do juízo final, uma espécie de fim que também é tentativa de encontrar uma promessa nesse fim. E tem um lance com a sonoridade das palavras; ela já começa com a lembrança, esperança, dia e toda uma coisa ali que vai formando isso. E até a presença do inglês. As passagens em inglês, que têm destaque no arranjo, ajudam de alguma maneira a formar o momento do encontro. Está tudo falando de desencontro e quando fala do encontro erótico está em inglês e então fica cifrado, como se fosse o impossível.
Bruno Cosentino – Eu nunca tinha percebido isso. Mas é mesmo. E nessa canção tem uma imagem que eu gostaria de ter usado faz tempo e não conseguia, que é a dos tambores no lugar do sexo, e que tem a ver com o rito; aquela hora em que diz “a desrazão centrípeta do teu no meu centro tambores”, que traz a coisa que tá pulsando no centro do nosso corpo, nosso sexo, inssurrecto, aquilo que move, move mais, move sem razão, sem pensamento e sem reflexão.
2. Ciúmes
Mariana Quadros – “Ciúmes” já é assim uma porrada.
Bruno Cosentino – Ela é um blues, ela é bem assim. Tem um refrão bonito, que vai para cima com a melodia; e esse verso “o ninho da pessoa”, eu gosto disso, surgiu muito sem intenção, junto com a melodia; e quando surge assim soa bem, o que não aconteceria caso eu tivesse tido a intenção. É isso que é incrível em fazer música, quando faz tudo junto, as palavras vêm vindo, parece que não é você, porque você entra num transezinho.
3. O silêncio dos teus olhos
Mariana Quadros – Você falou que a música solar seria para você “O grande azul”, mas “O silêncio dos teus olhos” eu acho solar. Ela não é bem solar, mas a gente vem de uma música áspera, embora tenha o momento que sobe a melodia, “cada um tem seu lugar no corpo do outro”, mas volta com a pergunta “e eu, que lugar tenho no seu?”. E “O silêncio dos teus olhos” tem uma sonoridade mais pra cima, ainda que enganosa, pega aquele “grito insuportável da tua solidão” — porque a música, se não fosse esse verso, seria solar pra caramba, seria o encontro erótico, só que até o encontro erótico é solitário, porque o gozo do outro é a solidão. Nos seus outros discos, o gozo era muitas vezes fusão. Morrer no outro, se encontrar no outro. O “grito insuportável” é quase como se batesse em quem tá ouvindo, tipo “eu tô aqui fazendo de conta, tentando catar uma melodia mais alegre e de repente “pum”!
Bruno Cosentino – Sobre esse grito no final, eu lembro que eu achava insuficiente a melodia para expressar o que eu queria com a letra, sabe? Aí eu pensei, “será que eu mudo”, e acabou que não encontrei nada melhor, e não mudou. Aí fui gravar e me toquei de uma coisa que já sabia desde antes. É que às vezes uma voz só é insuficiente para você expressar aquilo que você quer. Quer dizer, você precisa de um registro. Um registro multipista, onde possa colocar outras vozes juntas ou precisa de um backing vocal. Você precisa da gravação, do fonograma, para poder expressar aquilo. Na composição, simplesmente a melodia é insuficiente, porque eu queria extravasar mais e eu não consegui porque me faltavam outras vozes do meu próprio corpo. A gente não emite dois sons ao mesmo tempo. A outra coisa dessa música é o tema do menino, que eu percebi que é recorrente. Acho que é porque, para mim, a questão do erotismo e do sexo não está nada ligada ao pecado ou a algo imoral. Tem mais a ver com pureza e inocência do que com imoralidade. Porque no fim das contas eu não faço questão nenhuma de ser imoral. Ou melhor, não faço a menor questão de quebrar regras morais ou de levantar bandeira quanto a isso. Acho que essas coisas estão em mim muito mais ligadas a um aprendizado ético do que a uma postura de quebrar a moral. A moral é a moral, uma média meio burra e possível do que as pessoas em conjunto são capazes de construir para viver juntas umas com as outras. E eu percebi que o menino tá sempre voltando em várias músicas, muito ligado a essa pureza. Outra coisa de que eu gosto dessa letra é quando fala da posição dos corpos, “de joelhos, por cima, de bruços”, e acho isso gostoso, sugestivo (risos). Ah, também gosto muito desse verso do grito: “ouço o grito insuportável da tua solidão”.
4. O grande azul
Mariana Quadros – Eu acho que “O silêncio dos teus olhos” faz uma espécie de dupla com “O grande azul”. O disco começa pelo anúncio do fim e aí vem “Ciúmes”, que é muito duro, e aí começa uma lembrança. É como se a letra dissesse “olha, é uma lembrança, já acabou”. Mas tá ali como se fosse a atualização desse prazer, desse encontro, e aí vai para “O grande azul” e a coisa se torna realmente solar. Não só pelo som, mas pelo sol do meio-dia, o verão, a aposta na alegria. O arranjo parece que dissolve as passagens melancólicas. Essa eu também achei que tem um lance com as palavras, com o som das palavras, com o prazer de cantar as palavras.
Bruno Cosentino – Nessa melodia, eu precisei fazer um pouco uma coisa que eu não sou muito bom em fazer. A melodia nasceu junto com a letra em algumas partes e ficou logo prontinha, mas ficaram faltando partes de letra com a melodia já definida. Então, tive que encaixar as letras na melodia fechada. Eu não sou tão bom nisso, eu sou melhor fazendo junto. Mas eu fui fazendo e consegui. E acho que até por causa disso tem umas forçações que soaram bem. Gosto de uma rima que rolou na segunda volta, quando diz “na fotografia sorrio lasso / teu olhar egípcio triste é claro”. Tive que encaixar a letra ali pensando mais no som e entortando a sintaxe. Mas gosto do resultado disso. E algumas surpresas, tipo o “sem horizonte”. Quis descrever muito concretamente o céu que se encontra com o mar num dia de céu limpo e vira um grande azul apagando a linha do horizonte. Mas aí, sem intenção, o “sem horizonte” acabou ganhando também uma dimensão existencial, algo como “não sei o que fazer com a minha vida, estou perdido”. Essa era uma canção que só com voz e violão era muito pobre. Por isso eu chamei o [Marcos] Lobato. Ele toca guitarra e baixo nela. Uma guitarra super estranha, que eu sabia que ia dar um veneno no arranjo.
5. Quando penso em você
Mariana Quadros – Aí vem “Quando penso em você” e diminui a vibração, vai para uma coisa totalmente diferente.
Bruno Cosentino – Tem uma coisa que eu adoro nessa música: é a entrada da bateria e do baixo. O Pedro Fonte faz um anúncio com uma nota de bateria só, uma coisa meio Tim Maia, numa vibe perfeita. Eu amo essa entrada. Ela é uma balada mais banal, vamos dizer. Mas eu adoro ela. Surgiu quando eu estava tentando fazer “Você não sabe o que eu sofri”, mas os acordes não se encaixavam bem para o que tinha de letra. Já existiam os fragmentos de “Quando penso em você”. Então, eu botei os acordes da outra nela e deu certo na hora. Ela ficou pronta rápido e é por isso que talvez tenha esse sabor de soar bem de cara. É uma sorte. Normalmente as músicas que saem rápido, feitas com muita intuição, soam bem de primeira, eu acho.
6. Nas tetas da loba
Mariana Quadros – “Nas tetas da loba” é bem densa. Começa com um vocalise que me lembra um aboio, não sei se era essa a ideia.
Bruno Cosentino – Um aboio, não é? Eu andei ouvindo aquelas expedições que o Mário de Andrade fez pelo interior do Brasil (isso tem registrado em CDs que o selo do Sesc editou). Lá tem um aboio que eu acho lindo. Será que eu fiz daí? Esse aboio é um dos objetos estéticos que trago comigo sempre. O cara mantém uma nota muito, muito longa, balançando um pouco a afinação, e no final ele arremata com firmeza. Essa música tem a questão do abismo pré-natal, que eu gosto, como a morte de antes de nascer, e tem umas imagens de sonho também.
Mariana Quadros – Tem um título surpreendente, não é?
Bruno Cosentino – Tem um título que não está na letra. Talvez seja a única assim. Ela fala novamente de um desencontro, depois da miséria que o dia oferece, é bem pessimista.
Mariana Quadros – Esse momento em que o mundo é a música, em que o mundo aparece, mesmo quando tem um desencontro, é quase sempre referência da paisagem em que o desencontro está rolando, mas essa não, ela descreve de alguma maneira o mundo. Tem essa coisa das tetas da loba, tem isso do pai e da mãe, que aparecem muito nos outros discos seus, mas de outra maneira. Porque aqui já parece que o desencontro não é mais a coisa do ciclo de voltar ao corpo da mãe. É outra coisa, uma dissolução do amor; “serei seu pai e você minha mãe”, entendo pela lógica do fim do encontro erótico. E as tetas da loba me remete ao mito das crianças amamentadas por um animal e depois ela fala de cidade europeia. Tem uma relação aqui do animalesco irracional, tem uma jogada aqui.
Bruno Cosentino – Essa coisa de cidade europeia é pura imagem de sonho ou misturada a livros que li. Mas depois isso vai criando outros sentidos, como você está falando agora. E eu acho que é isso mesmo que você falou. Não tem uma lenda, um mito que fala disso?
Mariana Quadros – Tem o mito de Rômulo e Remo, que são amamentados por uma loba e, depois, se eu não me engano, o mito de fundação de Roma. Gosto de como tem no imaginário, na lógica da racionalidade, mas o fundo mitológico ali associa a alimentação animalesca mais usada, então tem essa jogada.
Bruno Cosentino – O que ficou pra mim dessa música é o sem pai nem mãe, da criança que teve que mamar nas tetas da loba, ligada ao bicho, ou seja, ao irracional, animal, e é por isso que acaba falando de pai e mãe. Não lembro mais qual foi minha intenção.
Mariana Quadros – Na letra, tem uma voz duplicada e sua dicção e o arranjo reforçam o “não serei seu homem e você não será minha mulher”, “serei seu pai e você minha mãe”. Acontece aí uma perda do encontro erótico. Se dissolveu, não tem mais homem e mulher. E aquele aboio, eu ouvi várias vezes, tá sobrando, não se relaciona com o que vem depois. Parece que a letra tá falando de um certo exorcismo, parece um ritual, um chamado. Uma relação meio diabólica, meio sagrada.
7. Você não sabe o que eu sofri
“Você não sabe o que eu sofri” tem uma letra longa, diferente das outras. Talvez as duas letras longas sejam as de “Bad Bahia” e dessa. E essa é uma música que parece feita de partes. Varia muito. Ela tem uma espécie de primeira parte e daí entra um grito que compra essa primeira parte, aí vem uma declamação que me lembra muito a Maria Bethânia, e aí vem a última parte que seria maior e tem uma sonoridade meio contínua.
Bruno Cosentino – Você tem razão. Ela é mesmo feita de partes. Antes, havia só a primeira, e eu gostava muito desse verso do início, “você não sabe o que eu sofri”, achava que tinha uma força. Aí, um amigo me sugeriu repetir essa parte, porque ficava bem dramático na volta. Então, voltei, repeti o primeiro verso e depois fiz uns gritos, tem uns ruídos do mato também; em seguida, tem um intermezzo, com uma letra muito teórica, de vocabulário difícil, tinha a ver com o que eu estava lendo na época, O conceito de angústia, do Kierkegaard, e botei ali no meio; achei que isso poderia dar uma onda estranha. Fiquei sentindo falta então de uma segunda parte, mais falada, e com fundo instrumental forte. Fiz uns improvisos e gostei de várias partes, mas nada de outras. Daí chegou a hora de gravar o disco e falei “cara, eu vou ter que definir agora”, mas mesmo assim não consegui. No fim das contas, só fui gravar isso em casa, por último, e continuei insatisfeito. Mas foi o que ficou, porque uma hora você larga. É isso aí.
8. O difícil sol
Mariana Quadros – Agora, a última. “O difícil sol” termina quase pela fala. Tem muito isso no seu disco, da canção ir se aproximando da fala; ele começa pela fala e, no final, vira isso de novo, mais uma vez; então, é quase como se a canção tivesse se aproximando do seu limite.
Bruno Cosentino – Eu estava lendo Espinosa, a Ética, e tenho com o que ele diz ali uma identificação profunda, de estar no mundo, de como me relacionar com a religião, com o corpo, com as pessoas, é tudo muito lindo, porque ele baliza nossos afetos por dois principais, a alegria e a tristeza, e diz que devemos buscar a alegria porque é ela que nos dá energia vital para seguirmos vivos. Então, tem essa coisa de desejar a alegria, a alegria pelo encontro com os corpos, as pessoas, o mundo, as coisas. É de uma saúde! Porque a relação é material, pouco psicologizante e nada moralista. O nome da canção, “O difícil sol” (como difícil é a alegria de ser conquistada), ficou soando para mim depois como “edifício”, e achei graça, como se a alegria fosse mesmo uma construção, conquistada a partir de um aprendizado. E tem uma coisa bonita no livro também que é a relação entre corpo e mente. A gente só pensa aquilo que experimenta com o corpo. Então, o pensamento depende da vida do corpo e de como ele é afetado. Acho isso verdade, porque eu funciono assim. Uma coisa que eu percebi depois também é que o disco começa com ruído de mata e acaba com ruído de cidade. Eu fiz esse disco muito rapidamente. Me arrependo de não ter deixado uma frequência grave, que parece um coração batendo, soando mais tempo no final e sendo engolido pelo som do trânsito e tomando tudo até preencher a tela toda… Acabou que isso é sugerido no arranjo, mas não acontece como poderia ter acontecido. Eu gosto dessa música, ainda posso me emocionar com ela quando a toco no violão.