Vovô Bebê

Perfil que escrevi do cantor, compositor, violonista e produtor musical Pedro Carneiro, aka Vovô Bebê, para a edição #3 da revista Polivox. 

I

O que salta à primeira audição de Pedro Carneiro é a singularidade da sua dicção —  a maneira como a palavra é cantada. Por um lado, constrói seu canto ao rés do chão da fala cotidiana. E quando digo “canto” ele compreende também a letra e a música, três elementos que se mostram indissociados. A coloquialidade é tal que faz pensar em ready-mades retirados de uma conversa entre amigos ou ouvidos de algum desconhecido na rua. E porque estão muito próximas da instabilidade da fala, nem sempre apresentam contornos fáceis e sua apreensão não é óbvia; existe algo de torto, quebrado, uma assimetria a um só tempo natural e construída. Pois, por outro lado, junto a essa espontaneidade da fala e em contraposição radical a ela percebe-se com igual relevância um pensamento musical — excelente instrumentista, suas melodias nascem da fricção altamente tensionada das notas do violão e do “jeito de dizer”, uma combinação que causa forte impressão.

Esse núcleo tenso me parece ser a gênese da sua poética cancional. Ela marca uma singularidade do artista nos trabalhos esteticamente mais díspares em que está envolvido. Veja-se em um extremo o álbum “Capitão coração”, com a banda Dos cafundós, lançado pelo selo inglês Far Out, e classificado como punk progressivo; em outro extremo, o recente disco de sonoridade camerística com a banda Boreal; entre os dois, seu primeiro disco solo, “Vovô bebê”. Nos três trabalhos, sozinho ou em parceria com seus amigos de banda, Pedro canta e assina composições e arranjos. Sua obra musical até o momento não deve ser portanto buscada somente pelo seu nome, mas sim no conjunto desses trabalhos coletivos, que abrangem o amplo espectro de sua poética. Pedro é essencialmente um músico experimental — não se trata absolutamente do experimental como estilo, herdeiro tardio do fetiche vanguardista do “novo” — que se vê diante da difícil posição do artista contemporâneo de decidir o que fazer com a liberdade formal que nos foi legada pelas vanguardas históricas. No seu caso, está sendo o desfilar por entre as convenções de linguagens musicais as mais extremas, mantendo o centro de seu estilo pessoal (aquele a que tantos querem chegar, mas que não está nas superfícies, é parte constitutiva de um modo singular de ser e de estar no mundo e por isso urdido com o debruçar-se sobre o trabalho no tempo), assumindo riscos, posicionando-se ora entre guitarras e baterias altas e frenéticas ora entre cordas de nylon e camas macias de vozes, flautas e clarinete.

II

Além de um melodista detalhista, é também um letrista com gosto especial pela materialidade da palavra — o sabor do som, a cor das sílabas —, os múltiplos sentidos que adquirem quando combinadas e recombinadas na forma da canção em aliterações, neologismos, modo de cantar, como um prazeroso jogo sonoro musical. E de alguma forma contida nessa relação lúdica com a palavra está um humor muito característico, impregnado de melancolia e que parece trazer à tona voluntária ou involuntariamente “o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida” (citando o poeta Herberto Helder) — o riso perpassa tanto os temas mais banais de suas canções crônicas quanto os de intenso teor existencial. Há igualmente um humor mais explícito, como o da canção “Saparada”, ou fantasioso, como o presente na história do coelho caolho, que está na base conceitual do novo disco do “Dos cafundós” (a ser lançado em 2017). Em outras canções, com melodias de notas longas, como em “Memórias de um peregrino no espaço” (do álbum “Vovô bebê”), a belíssima “Sobre o natural” ou o blues “Autoajuda” (ambas integram seu segundo álbum solo “Coração cabeção”, com previsão de lançamento para março de 2017), Pedro mostra um traço sentimental, embora sempre desconfiado e com um humor que de alguma forma aparece como antídoto contra o derramamento, com o efeito de buscar a concentração da emoção.

III

Por último, neste breve sumário, está seu trabalho como produtor musical. Com uma abordagem artística da produção, em que a técnica do estúdio está sempre a serviço da música, Pedro tem produzido discos de diversos artistas da canção brasileira contemporânea como o meu “Babies”, “Paralelos & infinitos”, de César Lacerda, o próximo de Thiago Amud e outros. O clima do estúdio Aienai segue a filosofia de seu amigo e tutor, o renomado produtor Chico Neves, com quem trabalha há alguns anos e de quem recebeu o estúdio do Rio de Janeiro (o antigo 304, onde Chico gravou discos importantes, como “Lado B, lado A”, d’O Rappa, ou “O dia em que faremos contato”, de Lenine”). O clima de gravação instaurado por Pedro em suas produções é resultado da administração sensível do que vem a ser a psicologia de um estúdio de gravação, que deve tentar conciliar o despojamento indispensável para a liberação da energia musical com o rigor e a disciplina do trabalho. Uma hábil construção do momento que está por detrás das nossas melhores lembranças musicais.