Um modo de habitar o mundo

Texto de apresentação do disco “Crocodilo”, de Luís Capucho, que produzi ao lado de Vovô Bebê e outros artistas da cena carioca e paulista da canção contemporânea. 

Conheci Luís Capucho quando o convidei para participar do show de lançamento do disco Amarelo, em 2015. Desde então, ficamos cada vez mais próximos. E eu, muito entusiasmado como ainda hoje o sou fui falando dele pra todos meus amigos, que foram, cada um a sua maneira, se tornando parte de um clube aberto de admiradores. Alguns o conheceram nesse show, que aconteceu no festival Gancho, no Rio de Janeiro, produzido pelo Alan Athayde. Gustavo Galo e Julia Rocha estavam na plateia e, antes do show começar, tocava o disco Poema Maldito, especificamente a canção título. Lembro de que, ao fim da apresentação, os dois estavam de cara e falamos sobre isso. Galo gravou “Para pegar”, do Luís, no disco Sol; Julia foi a editora de seu último livro, Diário da piscina (É selo de língua/2017). Nesse dia, faziam o gancho para o próximo show do festival a banda “Séculos apaixonados”, formada por Guerrinha, Lucas de Paiva, Arthur Braganti e Thiago Rebello. Os meninos também ficaram chapados e convidaram Luís para participar de um show que fariam dali adiante na praia de Ipanema.

Passado um tempo (não me lembro a situação específica) apresentei Luís ao Pedro Carneiro, aka Vovô Bebê, que, com seu misto de rigor e gosto pelo relaxado, também se apaixonou pela organicidade e estranheza das canções e comentou que as melodias e letras de Luís continham uma beleza pungente, mas fora do lugar, que corria nos subterrâneos. Atribuo essa sensação de Pedro a um jeito de olhar afetuoso de Luís para o sujo, o feio, a miséria onde a vida fermenta —, que faz com que tudo ganhe um encantamento ao passar pelo filtro subjetivo do compositor. Claro, isso tudo, somado às melodias sinuosas, às palavras insuspeitas e ao timbre de voz rascante e grave herdado do acidente que o deixou em coma durante alguns dias em 1998. Eu, Pedro e Luís fizemos alguns shows juntos, o “Três vocês”, idealizado e produzido por Isabela Bosi, e acabamos sendo o tripé deste disco Crocodilo, feito a muitas outras mãos e admiração mútua. Mas antes de nós três, Felipe Castro, produtor da obra-prima que é o disco Poema Maldito, fez, sem saber, a ponte para o novo trabalho.

Luís participou de um projeto da fotógrafa Ana Rovati chamado Vídeo retrato. Ao fim do ensaio fotográfico em vídeo, ele, ainda em posição, sentado no banco, perguntou se podia tocar uma canção que havia feito recentemente. Era “Homens machucados”. Na minha opinião, uma das mais lindas que já ouvi dele. Na sequência, lhe perguntei porque não gravava um disco com esse nome e me ofereci para produzí-lo. Luís aceitou, o que me deixou feliz por dias e ainda hoje. Nos encontramos depois e fizemos a seleção do repertório. No entanto, muitas outras canções não haviam se encaixado na temática e conceito do futuro Homens machucados, álbum que está em produção e deve ser lançado no segundo semestre de 2020. Em algum momento, Felipe sugeriu que gravássemos outro disco, pois as canções eram muito incríveis para que não houvesse registro delas. Propôs que o chamássemos de Crocodilo. A partir de então, resolvemos pedir a diferentes artistas, entre os quais alguns que citei acima, para, cada um, produzir uma faixa, pois dessa maneira, poderíamos dar um colorido ao álbum. E assim foi. Além de Gustavo Galo e Lucas de Paiva, outros amigos da cena, todos fãs da obra de Luís, se juntaram à equipa: Marcos Campello, Claudia Castelo Branco, Evaldo Luna, além de mim e Pedro Carneiro, que acabou se encarregando de mais de uma faixa, uma vez que foi em seu estúdio Aienai (antigo estúdio 304, de Chico Neves) que a maior parte das gravações se concentrou. A mixagem se dividiu entre os produtores e Pedro. E a masterização foi do Evaldo Luna. Ambas etapas mix e master eram estratégicas para dar coesão à sonoridade final, proveniente de escutas tão diferentes.

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Crocodilo enfim está pronto; arredio, com a cara própria que foi ganhando de tantas outras. É o quinto álbum de Luís, para mim, um acontecimento na fragmentária cultura brasileira do iminente anos 2020. O disco começa e termina, por acaso, com muita fumaça e cigarros. A primeira, “Antigamente”, produzida por Gustavo Galo e com guitarras de Vitor Wutzki, é uma destas canções narrativas em que Luís conta uma história e insere reflexões que são antes impressões intelectuais especulativas a partir da experiência vivida. Cantada na primeira pessoa, o personagem se lembra que “antigamente/ quando não tinha mais nada/ na noite fria e quente/ saía para pedir cigarro”. Tendo conseguido o cigarro com alguém na rua, observa que “tem gente que gosta de ver símbolo nisso”, e concorda: “o fogo realmente tem muito significado/ e a fumaça que completa a gente com seu corpo meio transcendente/ assim fluido, aquece meu espírito frio”; a partir de então, a sensação da fumaça toma o corpo todo e se estende à própria sensação subjetiva da fruição do tempo, que “passa mais lubrificado, agarra menos, é mais livre, mais solto, mais gostoso, mais completo”. Adiante, Luís canta: “dizem que a vida não é só sexo, acha brasa na ponta do cigarro”, e deixa entrever que, se a vida não é só sexo, sua premissa é sempre de uma presença intencionalmente sexuada. Para terminar, emenda no refrão: “vou fumando noite adentro o cigarro que você me deu”; dividido com Júlia Rocha, que coloca sua voz de timbre a um só tempo sóbrio e sexual como numa cópula vocal uma nuance do “grão” da voz que é pra mim um dos pontos altos do disco. Na última faixa, “Virginia e eu”, produzida por Pedro Carneiro (também última a entrar na coletânea), Luís constrói uma melodia circular por adições de versos. De modo intuitivo, pequenos trechos de uma longa frase são acrescidos de outros, que ora são repetidos por inteiro, ora não, o que cria uma sensação de devaneio envolta pela fumaça, que aqui se torna palpável, revelando, ao fim, como que se descortinando por detrás da vista enevoada, dois personagens, e a pergunta: “o que aconteceu entre Virginia e eu?”.

Devo destacar a canção “Girafa”, pelo que ilustra de um modo de ver particular de Luís, ao mesmo tempo contemplativo e analítico, que perpassa algumas de suas canções; analítico, se é que se pode dizer assim, banhado mais por sensações do que pela razão, e conduzido por um fio imaginativo. A letra, sobre arpejos espaçados ao violão, começa explicativa: “Eu não entendo as coisas exatamente como elas são/ mas o meu pequeno entendimento delas não me impede de alguma compreensão”. Faz contraponto ao movimento do pensamento os pianos subdivididos em staccato de Claudia Castelo Branco, que também assina a produção da faixa: “Eu sinto o meu pensamento se movimentar/ e a me fazer sentir entre as costelas…”. Nota-se que o pensamento se faz sentir entre as costelas, numa sensação física e não intelectual. Apesar de paralisado diante da figura fantástica do animal, ele canta: “mas daí a entender a girafa/ com toda sua plenitude de girafa/ vai uma distância/ bem maior do que a existente entre meu pequeno tamanho que segura minha cabeça em seu alto/ e a altura gigantesca do pescoço da girafa com a cabeça dela lá em cima”. Todo esse longo texto é cantado sem pausa para respirar e com melodia monódica, que só acaba quando tudo tiver sido dito. Porque esse é outro aspecto das canções de Luís: enquanto houver palavras, deve haver notas para cantá-las. As melodias, feitas dessa maneira, ganham curvas inesperadas e imprimem verdade ao discurso. O olhar de Luís é voltado para a superfície das coisas e, nesse sentido, é um canto da saúde do corpo, celebra a existência em sua materialidade sem mistérios; ou melhor, ao descrever objetivamente o que vê a existência em sua forma imediata , nos faz atentar para o oculto das superfícies, isto é, para nada além do que só pode ser percebido pelos sentidos e sobre o qual não parece haver entendimento possível. O que resta é a criação. Parafraseando a letra: mas o meu pequeno entendimento delas não me impede de alguma criação.

A desintelectualização na obra de Luís encontra, não à toa, nos muitos bichos que povoam este disco expressão de um desejo patente de simbiose com a natureza. Na canção título, também produzida por Pedro Carneiro, ele canta sobre flautas melismáticas de sabor oriental: “Sou um crocodilo na beira do Nilo/ e nem respiro para te pegar”; falando sobre si mesmo-crocodilo, descreve-se como tendo a casca grossa, a pele macia “aerodinâmica elaborada por milhões de anos”; permite-se estar na margem, qualidade desse animal que fica parado como estátua. O humano do personagem vai emergindo de sua casca de crocodilo, e de novo as palavras surgem associadas ao movimento imponderável do ambiente natural mas é pensamento: “voam palavras, línguas de palavras se insinuam, insetos de palavras, serpentes de palavras rastejam”; descreve então o movimento das folhas caindo e dos galhos balançando, “num caos tão lindo como se estivesse” sua alma a cantar; ao que se segue um “thururu” e um “lálará”. Esses trechos sem letra são muito comuns nas canções de Luís. Muitas vezes remetem simplesmente a um vocal ingênuo típico da música de salão ou brega, por que tem apreço, mas também, e aqui, imagino aludir ao que não pode ser dito com palavras, mas somente cantado em puro som significante.

Outro bicho que está presente no disco é o morcego de “Edson do Rock”. A produção, primeira de Pedro Carneiro para o disco, é um primor de imagens sonoras, sugeridas pelos sons das teclas das flautas e por um backing soprado de Pedro, que canta em uníssono quase a letra inteira, interrompendo por vezes com sopros fortes, que criam uma atmosfera cheia de vapores, névoas, fazendo contudo sobressair as cores da noite; noite que, se para a maioria das pessoas é zona de dissipação e incerteza, para Edson do Rock, o morcego, é quando se sente mais seguro “nas correntes do vento” nessa parte da letra, a harmonia se abre e a flauta que acompanha a voz faz a gente voar junto com o animal.

Outro tema que salta na audição de Crocodilo é a tristeza. Como disse, a meu ver, o canto de Luís é um canto da saúde; então, a tristeza doença da alma é seu avesso; tratada, no entanto, de modo investigativo, pois sempre acompanhada de uma reflexão mansa e inquieta, que, por sua vez, a ultrapassa. Esse é o motivo principal de duas canções do disco: “Quando é noite” e “Triste”. Na primeira, um blues, ele canta: “Quando é noite e tenho de compor os meus pedaços/ como se eu fosse depois da explosão da vida, do mundo, da existência louca” ou “e a gente vê que vai perdendo tudo/ e a gente vê que não entende mais nada/ a gente vai se envergando,  se envergonhando, a gente vai se retesando, a gente vai ficando muito triste”. Mas a noite, metáfora da tristeza, é, de repente, atravessada pelo som de uma “guitarra alheia”, que chega, portanto, acidentalmente. O som, que poderia ser apenas ruído, reiterando o caos interno que vive o personagem, contém, no entanto, um princípio organizador: “mas muito dentro dos mínimos requebros”. O ritmo, ainda que um resquício mínimo dele, convoca o corpo à dança, ao ritual, e o harmoniza com o cosmos e a vida coletiva, isto é, o retira de dentro de si e o devolve ao mundo: “Ai, a alegria do voo dos pássaros lá fora/ e o brilho frio das estrelas”; trecho da letra acompanhada de melodia que emula o livre movimento e a dinâmica dos pássaros no céu. Algo semelhante ocorre em “Cérebro independente”, samba com roupagem eletrônica produzido por Lucas de Paiva. A canção começa com o dístico lapidar, digno de um grande poeta: “Sorte a minha que nasci/ e que um dia vou morrer”. Entre o nascimento e a morte, mais uma vez a indissociação entre mente e corpo, elucidada pela dança: “Porque samba deixa o corpo livre/ samba é música de libertação/ samba junta o corpo no cérebro demais”. O gérmen insurgente da alegria está explícito igualmente na canção “Triste”, produzida pelo compositor e guitarrista Marcos Campello, que aproveita os espaços entre os ataques assimétricos do violão de Luís para criar, com baixo, surdo, caixa, guitarra e caixinha de fósforo, um groove quebrado e furioso, que só reforça a verve do canto: “Você disse que eu sou triste/ tem gente que é triste mesmo, tem a natureza triste”. A tristeza, que não é ele quem diz que tem, corresponde à natureza do dia cinza: “Triste como a natureza desse dia nublado/ céu pesado sobre a cidade/ o mar cinza/ dia nublado é triste”. E surge a questão, a meu ver, um tanto enigmática: “Do jeito como você disse triste pode ser que eu seja triste mesmo/ do jeito como você disse triste pode ser que eu seja foda/ foda como a natureza desse dia nublado”. Terá o acusador confundido tristeza com o rosto grave do artista, de que fala o verso de Drummond?

Há ainda “Acalanto do amor”, única parceria do disco, com Douglas Oliveira, que escreveu a letra. A faixa, produzida por mim e por Pedro Carneiro, destoa um pouco das demais. É uma balada fluida, porém torta, que causou muitas dificuldades para os músicos. Pedro Fonte, da banda Exército de Bebês, gravou a bateria, e Vovô Bebê, a guitarra. Ela tem aliterações saborosas, em versos como: “gosto do gozo, do pelo no pelo, no malabarismo erótico” ou “da grandeza do coco de roda às náuseas do noize”. Uma declaração de amor desde o submundo; como se diz na letra, “necessidade vital de espírito vulgar”: “Deixe-me jogar teu jogo/ deixe-me amar tua alma/ andarilhos pelas ruas imundas e com cheiro de vômito”. A canção termina com um refrão “para cantar”, a la Sullivan e Massadas: “Deixa eu abraçar seu corpo num fim de tarde/ olharemos a chuva o cachorro late, ciúmes/ momentos felizes, o céu tá laranja, agradável, nostálgico”.

“Vale”, produzida por Evaldo Luna, resume bem o tal modo de habitar o mundo de Luís a que me refiro. O cantor descreve um dia em casa, no vale onde mora, e permeia a narração com lampejos de pensamentos fenomenológicos: “Cada pessoa tem seu próprio mundo. O meu no vale onde moro./ Sem isso nada faz sentido, nada vale, não fosse nele que vivo”; um microcosmo pleno, onde gritos de pardais convivem com reminiscências de versos de poetas, num espaço-tempo mítico. O cantor-voyeur flagra de sua janela uma cena frugal na casa vizinha. Esse é um dos momentos em que o domínio de Luís com a matéria da emoção na canção chega ao ápice. O fato cotidiano mais banal, cantado com melodia rasteira, ganha a dimensão do absoluto; daqueles momentos sobre os quais dizemos ser inesquecíveis. A cena de amor é esta: “E eu olhando pela janela as luzes acesas do bairro/ Outra pessoa em outra janela atende o celular/ E eu ouço ela dizer: ‘Oi meu amor/ O que você está fazendo? Vem pra cá, pega o ônibus/ Estou terminando de fazer o jantar. Vem comer comigo’/ Aí, eu saio da janela, você sabe, sumo dentro de casa/ Cada pessoa tem seu próprio mundo, o meu nesse corpo onde moro”.

O “olho digital” do compositor-crocodilo olhos que fazem a “varredura” surpreende o instante, no ato, e os cristaliza em instantâneos afetivos prenhes de emoção. Quando, na volta, escutamos a voz viva (mente ativa) do cantor, temos também a chance de habitar um pouquinho esse corpo-mundo onde mora Luís.