31 de agosto – por Eduardo Losso

Texto escrito pelo crítico e professor de literatura Eduardo Losso, no calor do momento, após ter assistido ao último show “Homens flores”, na Áudio Rebel (RJ); publicado no seu perfil do Facebook.

1 – Ontem vi o Show Homens Flores de Bruno Cosentino no Áudio Rebel. Alguma coisa muito especial aconteceu ali.

2 – Há uma dificuldade minha de apontar tal especialidade, porque ela não se anuncia, não faz alarde. A princípio, não parece ser nada mais do que um pop delicioso, simples e bem feito. Banho de mar adentro de corpos nus (“The big blue”).

3 – Só que eu gostei mais do que normalmente gostaria, em trabalhos desse tipo (eu adorei), sem conseguir dizer, de início, o porquê. E precisei pensar.

4 – Bruno foi editor da revista Polivox (que durou certo tempo e marcou época), de eventos importantes sobre canção na UFRJ e agora está na coordenadoria de literatura do IMS. É um jovem intelectual e possibilita encontros e debates. Defendeu recentemente uma tese sobre Vinícius de Moraes. Aliás, sempre me surpreendeu essa virtude intelectual de alguns cantores de MPB, em contraste com a pobreza reflexiva dos músicos de rock (o que muito lamento), mesmo quando os de rock são virtuoses instrumentais. De todas as heranças de Chico e Caetano que existem, essa me parece ser uma das mais positivas.

5 – Esse lado intelectual comparece no trabalho como um fundo invisível. As canções são curtas, na medida perfeita, diamantina. Seu corpo flutua no palco, em gestos precisos. As letras são breves, como “Nunca mais”, que ritma a rima em “á” agudo, pontiagudo (“será”); no entanto, no CD, ouvimos uma voz sombria, quase imperceptível, confirmando “foi”. Os tempos do passado glorioso e do presente sombrio se embaralham, no erotismo e na história.

6 – Algo como um fio de Ariadne de bossa nova, também invisível, guia o groove, o space rock neosetentista dessa banda surpreendente que é o ‘Exército de bebês’ e convive com o renascimento atual do psicodelismo. Se eles estão mesmo dentro dessa tendência, são uma de suas melhores versões. Os agudos e as glossolalias de Bruno participam dos êxtases instrumentais como um pequeno pássaro sugando a flor da batida.

7 – Bruno foi inserido numa nova tendência de MPB erótica e, nesse escopo, ele é realmente uma encarnação do que poderíamos chamar de ‘espírito Odara’: mistura de precisão estética, leveza existencial e vagueza narcótica de sentido, que durante tanto tempo reinou no ambiente cancional brasileiro, especialmente nos anos 80. Alegria de viver o tempo presente. Dançar.

8 – Mas o lado intelectual-curatorial do Bruno aparece justamente em inserir a voz e o violão de Luís Capucho no centro, no coração de seu show, cantando “Poema maldito”. A canção apresenta o triste espetáculo de um aleijado se contorcendo “em sua agonia de inseto moribundo”. O grotesco da cena imaginada alcança o próprio humor contido na loucura, e diverte a plateia; mistura estranha, em voz rouca, acompanhada dos acordes maiores desalentados desse nosso Lou Reed carioca.

9 – A parceria de Bruno com Capucho me revelou a senha do abismo que está por trás da suavidade e sensualidade de Bruno. Bruno contempla a força maldita e dolorosa de Capucho, assim como Capucho contempla o homem flor Bruno, tocando com os homens flores da banda. O coração do show é grotesco, mas o show inteiro é precioso, aquático, cremoso, calmo, florido, flutuante.

10 – Bruno revela a beleza dos homens frágeis do mundo contemporâneo, que, não há dúvida, é hoje das mulheres. Bruno e o ‘Exército de bebês’ se livram de qualquer falocentrismo e assumem a pura delicadeza. A beleza masculina da nova geração, de fato, está não na participação nas raivas e gritos fálicos da polarização. Está na leveza extemporânea de uma beleza frágil, simples e talvez até infantil, sim, são bebês (tudo aquilo que antes era signo feminino). Mas é nela que tais homens hoje são fortes. Hoje eles formam um exército de paz e amor, à sombra da explosão política, profissional e artística das mulheres, que estão e devem estar na frente, na proa, na vanguarda.

11 – Talvez tudo isso seja utópico, irreal, onírico, sem sentido no meio dos horrores de hoje. Contudo, eu vejo uma nova geração de homens exatamente assim. Embora minoria, eles existem e são reais. Fortes.